08 dezembro, 2004

. na pia

Vozes baixas saem dos seus corpos, sussurram, algo que não consigo decifrar. Uma luz denota as suas formas, lembra-me os meus sonhos, o meu buraco negro, e a luz lá no fundo, no fundo da fenda...

Um mosquito morto na pia. Um ponto preto no branco. Acordo para ver isto. Mas porque é que acordei? Olho mais de perto. Umas asas minúsculas saem do seu corpinho peludo. O tempo a correr à minha frente, acena-me, e o ponto negro imóvel na pia. Sinto o mosquito a olhar-me, sei o que está a fazer, percorre os domínios da minha alma, cheira-lhe a podre, quer comer-me. A vida a fazer-me uma rasteira, ri-se de mim ao longe, e o mosquito a olhar para mim. A morte, não se compara a acordar todos os dias para um espelho partido. Sete anos de azar, grita-me o mosquito, da morte branca, porque a sua morte assim o foi, branca. Cego até à cova, o mosquito transporta consigo o sangue de mil mulheres, a sordidez de muitos homens e a podridão dos velhos, acabando morto na minha pia branca. Sem agradecimentos ou injúrias, o mosquito morre na ignorância. A insanidade a fugir-me pelas mãos, esconde-se de mim na sombra, e o mosquito a subir-me à cabeça. Uma gota cai da torneira, e o mosquito mexe-se. A luz da casa de banho atinge-me bem nos olhos. Começo a ouvir os seus sussurros, palavra a palavra, começo a perceber... Uns morrem no branco de uma pia. Outros no sangue de uma batalha. Mas todos morremos para cair no buraco negro do começar uma nova vida. Aí surge a luz e depois o sangue, e todas as cores do arco-íris…

Abro a torneira, a água sai enferrujada, e um ponto negro desaparece pelo buraco da pia.

04 dezembro, 2004

teias do tempo


"A Miss Hudson acabou de fechar o livro - disse Rhoda. - Está a começar o terror. Agora, pega no giz e começa a desenhar números, seis, sete, oito, e depois uma cruz e só então uma linha. Está tudo no quadro. Qual é a resposta? Os outros olham, olham com ar de quem compreende. O Louis escreve; a Susan escreve; o Neville escreve; a Jinny escreve; até mesmo o Bernard começou agora a escrever. Todavia, eu não consigo. Apenas vejo números. Um a um, os outros vão entregando as respostas. Chegou a minha vez. Só que não tenho respostas. Os outros tiveram autorização para sair. Deixaram-me sozinha para que encontrasse a resposta. Os números não têm qualquer sentido. O sentido desapareceu. O relógio faz tiquetaque. Os dois ponteiros são como caravanas a atravessar o deserto. As barras negras no mostrador são como oásis verdes. O ponteiro maior antecipou-se para ir buscar água. O outro, dolorosamente, vai tropeçando por entre as pedras quentes. Acabará por morrer no deserto. A porta da cozinha bate. Os cães vadios ladram lá longe. Reparem, a forma redonda do número começa a encher-se com o tempo; o mundo está todo lá contido. Comecei a traçar um número, o mundo está lá dentro e eu estou fora do laço. Acabo por o fechar - assim - selando-o, tornando-o inteiro. O mundo está completo e eu estou de fora, a gritar: «Oh, salvem-me, salvem-me de ser afastada para sempre do laço do tempo!»"

As ondas, de Virgínia Woolf