20 fevereiro, 2005

nascer


A voz diz-me outra vez que me tenho de levantar. É importante. O quê? Deixa-me dormir…
Vem. Para onde vamos?
Para o fim do mundo. Precisas de ver. VER.
O fim do mundo? … Eu vivo aqui bem, deste lado do vidro, não vês? Sempre que olho para o mundo dos Homens, entristeço-me, eles são indiferentes à miséria, à crueldade, à destruição lenta e gradual da sua raça. Os velhos andam pelas ruas, de olhar triste. O homem das laranjas é outra vez assaltado pelos rapazes que correm a rir, e o miúdo de nariz vermelho é gozado. A mulher corre para apanhar o autocarro, não pode perder o emprego, já ganha tão pouco… o homem de fato olha o relógio, a rotina diz-lhe que tem de passar aquela esquina às 9:05, se não o mundo acabará. Enquanto isso, do outro lado da rua, os pais deixam os seus filhos na creche a correr, e os miúdos olham para trás com um olhar perdedor, como se tivessem sido arrancados da cama a meio da noite e o frio se lhes apoderasse… Tenho frio. Que luzes são estas?
Atravessa essa frecha na parede. Do outro lado está o que precisas de ver.
Sozinha? …
...
O céu estava coberto de nuvens cinzentas e roxas, raios de pôr-do-sol trespassam os céus, mas onde estava o Sol? O céu apocalíptico estendia-se sobre um infinito campo cinzento, e no meio, erguia-se uma torre sem escada. Seres, formas difusas, pararam para me ver, mas eu não os conseguia delinear, uma sombra pairava à sua frente, espectros, almas perdidas, humanos?... algo daquela imagem insólita me fez cair e depois só vi a escuridão.
Acordo de súbito, fora só um sonho...
Aproximo-me do vidro. A vida do outro lado é tão estranha. O homem do fato olha o relógio sem vida. Uma rapariga esboceja, entorpecida pela manhã. Vejo-lhes as caras, são reais, mas não me podem ver. Não, ninguém me pode ver.

Porquê?
Não quero olhar-me ao espelho e não me ver. Não quero ser humana.
Porquê?
...
Eu sou tu. Tu és humana. VÊ.


um espelho cai-me das mãos
pedaços de mim espalham-se, partem o vidro do meu mundo
caio
.
.
.