28 janeiro, 2007

revolvimento.

Rondava os quatro cantos do quarto refugiando o seu olhar na pequena janela que o unia às ruas inquietas. O sol fugia-lhe indomitamente do outro lado, os passos e as vozes minguavam à passagem da sombra, é tudo um grande teatro, pensou. Lendo os seus pensamentos, a noite fez o seu aparecimento em palco, projectando a sua bailarina nas paredes vazias da divisão.
Quisera deitar-se, o dia seguinte assemelhava-se na sua mente ao de Prometeu, mas algo o detinha. Pleno na escuridão, repousou o seu corpo cansado na parede e humedeceu os beiços. Algo se esgotava além da água nas suas células, um nada que poderia ser tudo... estendeu as mãos e perscrutou as suas linhas, veias, protuberâncias. Procurava inutilmente a causa em algo de palpável e, por momentos, acreditou ver numa mancha de sangue a fonte do seu descontentamento. Acenou negativamente com a cabeça, aquela mácula existia há muito, não se lembrava era do que a tinha provocado... sorriu. Recordara-se dos seus dias de infância, das vezes em que chegava a casa imundo, com os cotovelos e joelhos ensanguentados e, ainda assim, feliz de si. Perante a grandeza de um mundo por descobrir, o aspecto exterior em nada abrandava o seu curso desvairado...
Nada restara desses tempos, apenas a agridoce lembrança.
Hoje somente desejava poder esquivar-se da realidade e das suas teias, refugiar-se noutro reino, um de profundas crateras e seres alienígenas incompreensíveis para a sua fragilidade humana... não teria de relacionar-se, apenas subsistir (e só se o quisesse). Aqui, ele permanecia interminavelmente ligado aos outros; o acaso unia milhares de pessoas que, mesmo na mais profunda solidão, se encontravam agarradas por correntes, umas temporárias, outras eternas. Eram as últimas que, nos seus momentos mais lúgubres, o impediam de cometer um acto de pura sanidade
(a insanidade mantinha-o vivo)
Colocou uma velha música a tocar no seu gira-discos. A voz feminina deslizou pelo vazio, encontrando-o caído no chão.
Tonight we escape...

he fell asleep.

*

3 comentários:

rita disse...

estranha história de embalar...

*

AcesHigh disse...

Sensibilidade...

Estranha mas interessante!


a kiss*

Light disse...

"..Mergulho na banheira de água quente,submergida,sustenho a respiração até ao limite. Lentamente,sem pressa,retomo a vida,enchendo o peito de ar. Recosto-me contra a frieza gelada da cerâmica branca. Cerro os olhos.
O corpo perde força, libertando-se do cansaço,do suor, dos cheiros do meu dia, da poluição. Livre do dia que acabou. Com a mão abro o frasco de óleo de banho para dentro de água, vazando quase a totalidade do seu conteúdo.
O cheiro invade o espaço num odor doce e agreste numa mistura almiscarada e sempre calmante aos meus sentidos. Ninguém em casa. O silêncio deixa ouvir os primeiros sons da noite, os pássaros anunciando o regresso ao ninho, os carros que passam céleres numa invasão de fim de dia, sequiosos de chegar a casa, o ruído incessante dos cães adivinhando o regresso iminente dos seus donos. Às escuras, aninhada na água quente, no silêncio do meu fim de dia escuto a minha voz. Os segredos invadem o meu peito, a luz invade-me o olhar, a saudade aperta-me o peito. Baixinho, a sussurrar, a voz dos meus sonhos ocupa o espaço que tantas vezes lhe roubo. Aquela voz silenciosa que poucos conhecem, e quase nenhuns entendem. É a voz sem palavras, sem pronúncias, erros ou acentos. É a voz pura e nua que evolui dentro de mim, nunca me deixando esquecer quem sou e quem sonho ser. Ergo-me sobre a água quase fria, o corpo pingando num restolhar de sons invasores. Abro o chuveiro, deixo a água queimar-me a pele, coloco o rosto sob o jacto forte, e, mais uma vez, sinto parar o tempo. Lavo o meu corpo quente enquanto liberto o creme hidratante espalmando a esponja contra o meu peito. Os cabelos curtos pedem atenção e sem paciência passo o creme que os manterá macios. A água do chuveiro cai incessantemente entorpecendo outros sons e a realidade para além do espaço onde estou. Os olhos abrem-se para encontrar a escuridão instalada. O banho termina, enrolo a toalha á volta do peito e deixo que o meu corpo se enxugue contra o tecido macio. O espelho reflecte-me. Ou apenas reflecte os que os meus olhos vêm? Deixo que o pijama de flanela fina, deslize sobre o corpo, fazendo-me sentir confortável. Descalça, dirijo-me ao quarto onde a cama aberta deixa ver os lençóis alvos que me estimulam os sentidos. A luz da noite encaminha-me para a janela, pela qual posso apreciar a luzes pequeninas de cada casa lá fora. Deixo o estore aberto pela noite dentro,tentando adivinhar as sombras que se estendem na parede....Deito-me na cama larga, abraço a almofada vazia e adormeço.
Será que é sonho??"

*Adorei o texto e alonguei-me no comentário,fixei os olhos na pequena janela que me leva os pensamentos mais recônditos e me deixa assim,sem dormir...